sexta-feira, 25 de maio de 2012

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O Desespero – por Inês
É triste, muito triste, a morte é um vazio profundo que

não tem retorno.

Tinha eu 14 anos quando o meu irmão Carlos Alberto

morreu de ataque cardiaco. Caiu fulminado quando conversava

comigo, morreu nos meus braços e esse facto marcou-me

profundamente, pois o meu “Mano” como eu lhe chamava, tinha

apenas 18 anos. Aquele dador anónimo, era um irmão de alguém,

talvez, e o filho de uma Mãe que chorava a sua dor!

Eram 3:00 da manhã, os sentimentos atropelavam-se,

estava verdadeiramente perdido, desorientado e quando a Lígia

saiu do bloco vinha lívida, exactamente no mesmo estado em que

eu me encontrava. Ela descreveu-nos tudo o que se passou e só

saiu de lá depois de ver o Vitinho fechar os olhinhos.

Tinhamos acabado de nos despedir do nosso filho, pela

primeira vez não estávamos ao seu lado para o proteger e

faltava-nos a sua companhia, estávamos verdadeiramente

desamparados e desesperados, entregues à medicina e a Deus…

se ele existisse!

Ficámos por ali, “abandonados” nos H.U.C. e a

determinada altura percebemos que não estávamos a fazer nada

e certamente tão cedo ninguém mais nos daria novidades.

O que entretanto tínhamos conseguido saber é que iam

acontecer dois transplantes, o primeiro seria o de uma paciente

adulta e o segundo o do Vitinho. A paciente estava em estado

crítico e por isso tinha de ser a primeira, mas para nós, embora

entendendo essa lógica, esta notícia deixou-nos inquietos por

causa do tempo de isquémia.

Tentando explicar o processo de forma simples, o fígado

do dador seria sujeito à sua “bipartição”. Para um adulto, basta um

dos lóbulos, para um bébé, obviamente que a parte que lhe couber

terá de ser “reduzida”. A técnica da redução do segmento não é

propriamente simples de executar, ou melhor tanto a bipartição

como a redução, são técnicas complexas, demoradas e se mal

feitas comprometem o êxito do transplante, digo-o mas não

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percebo nada do assunto, apenas estou a citar o Dr. Emanuel

Furtado que teve a amabilidade de mo explicar! Tudo isto demora

tempo e esse tempo é precioso, o tempo de isquémia é

precisamente o tempo que o orgão aguenta até ser novamente

irrigado pela corrente sanguinea, sem que se comprometa a função

do enxerto, agora e… sempre! O ideal seria que esse hiato de

tempo não ultrapassasse as 6 horas, mas hoje em dia toleram-se

tempos de isquémia mais alargados e ao que parece, sem que se

verifique “o risco de função pobre”. De qualquer modo e como diz

o Dr. Emanuel, “numa coisa estão todos de acordo, é que a quanto

menos tempo de isquémia o enxerto estiver sujeito, melhor!”.

O facto de termos consciencia disto mesmo,

atormentava-nos, é que o transplante hepático nada tem a ver

com o transplante renal, o acto cirurgico é muito mais complexo,

muito mais demorado e… antes do Vitinho havia o outro

transplante! Nós também sabiamos que o fígado é o orgão do

corpo humano que melhor capacidade tem de se regenerar,

sabiamos de tudo isso, mas a angustia tinha-se apoderado de nós

e dificilmente nos largaria, eram diversas as variáveis e todas

elas jogavam em desfavor do nosso filho.

Saimos dos H.U.C. e fomos para o nosso hotel. Cada

segundo, cada minuto, demoravam uma eternidade! Não

conseguimos dormir e demos connosco a rezar

desesperadamente, eu, para ser franco nem era bem rezar,

lembro-me que repetia incessantemente “o Vitinho vai viver, o

Vitinho vai viver, o Vitinho vai viver, o Vitinho vai viver, o

Vitinho vai viver, o Vitinho vai viver”, isto continuamente, sem

fim, até a quase senilidade!

Finalmente chegaram as 8 horas! Fomos ao Pediátrico,

viemos do Pediátrico, disseram-nos que não valia a pena irmos

já aos H.U.C., deambulámos pelos diversos sítios. Conseguimos

apurar que o transplante do Vitinho ainda não tinha começado,

continuávamos perdidos, tentavamo-nos encontrar, mas não

conseguiamos lidar com tanta ansiedade!

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Voltámos ao Pediátrico e dirigimo-nos para a cama onde

o nosso filho tinha estava internado. A enfermaria da pediatria é

composta por pequenas alas de três camas, estávamos isolados,

porque isso era possível, isto é, o Hospital Pediátrico não estava

num momento de grande afluência e assim protegia-se o Vitinho

de potenciais contágios de outras quaisquer maleitas, pois a

acontecerem, poderiam complicar tudo muito mais. Quando

chegámos à “nossa cama” ela já lá não estava, ou melhor essa ala

estava vazia, tinha apenas duas cadeiras! Ao constatarmos esse

vazio, ainda ficámos pior, estávamos realmente muito em baixo!

Todos os dias lá chegava daquela forma, olhava para ele na

camita e tentava sacar-lhe um sorriso e agora … apenas o vazio!

Não conseguiamos conter-nos e a Dra. Isabel nunca mais

aparecia o que inviabilizava que obtivessemos informações. Dei

por mim sentado a olhar para o chão, a deixar correr as lágrimas

livremente, estático, como se tudo estivesse perdido, como se

mais nada interessasse!

Realmente não valia a pena ficarmos por ali, até porque o

ambiente “por natureza”, já era suficientemente deprimente, com

a visão de outras crianças doentes, algumas delas terrívelmente

doentes! Voltámos a sair do Hospital e fomos para o Hotel pois a

mãe da Lígia deveria estar prestes a chegar de Ovar. Já no quarto

do hotel soubémos que o transplante se tinha finalmente

iniciado, já não posso precisar que horas eram, mas lembro-me

que desta vez tinhamos conseguido algumas informações, entre

elas, que foi dificil encontrar uma “veia boa” e que o Dr.

Emanuel já “em desespero” tinha-se socorrido do pescoço, mas

... dados exactos de como estava a correr o acto cirúrgico, isso

não sabíamos!

Nessa altura, pouco mais poderiamos fazer, a Lígia

agarrou-se a um Terço a rezar desenfreadamente e eu,

instintivamente agarrei a cruz que tenho na volta do pescoço e

continuei a minha “oração do costume”, isto durante umas três

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horas, até que, como não aguentávamos mais decidimos ir

novamente para os H.U.C..

Lá chegados, não conseguimos ver ninguém, nem saber

de nada até porque o Bloco era num local não acessível.

Estávamos no piso dos doentes hepáticos e que também

albergava a U.C.I., piso esse para onde o Vitinho iria após o

transplante.

De repende apareceu-nos o Dr. Bento mostrando surpresa

por encontrar-nos. Disse-nos que estava a acompanhar o outro

transplante, que não tinha informações sobre o nosso filho e

como não estava à espera de nos encontrar, não tinha procurado

saber. Todavia achava que estava a correr bem, isto apesar de

terem surgido dificuldades, nomeadamente uma grande

hemorragia que tinha sido eficazmente controlada. O Dr. Bento

ao dizer-nos isto, não nos descansou nem um pouco, antes pelo

contrário e também ele o deve ter percebido… pouco depois,

apareceu-nos alguém para explicar-nos qual era o ponto da

situação. Já não me lembro quem era, lembro-me apenas que nos

tentou tranquilizar, dizendo que tudo estava a correr bem, mas

que ainda faltava muito tempo até o transplante terminar.

Aconselhou-nos a voltar mais tarde, mas nunca antes das 18:00.

O que aconteceu a seguir, já não consigo recordar com

precisão, o que sei é que pouco tempo depois fomos novamente

para lá e ficámos “de plantão” à espera que o transplante

terminasse. Volta e meia passava um ou outro elemento “com ar”

de ter estado no bloco e íamos notando que as caras estavam

tranquilas e isso também nos dava alguma paz!!

Perto da 18:30 avisaram-nos que o Vitinho estava prestes

a subir e começámos a ver uma maior movimentação, os minutos

pareciam horas e o nosso filho nunca mais aparecia até que se

abriu a porta do elevador e lá estava ele, o nosso herói! A

fotografia não era propriamente entusiasmante, à excepção dos

semblantes alegres dos que o acompanham e do próprio Dr.

Emanuel que nos fez um rasgado sorriso e nos olhou bem nos

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olhos, com confiança e como se deve fazer, frontalmente, até

nos chegar à alma! Não precisou de falar, porque os olhos

disseram-nos tudo, o Vitinho coitadinho, tinha tubos enfiados

por todos os lados, nas narinas, na boca, em ambos os lados do

abdómen, nos braços, enfim, era um bébé pequenino no meio de

uma gigantesca parafernália de maquinetas, tubos, fios, alarmes,

etc, etc, etc.

Apetecia pegar-lhe e acarinhá-lo, mas ele estava sedado e

todo aquele aparato de equipamentos inviabilizava-o.

Permitiram-nos acompanhar o nosso filho até à U.C.I. e lá

pudemos assistir ao cuidado e ao carinho de todos os que o iam

tratando. Todos queriam retocar um tubo, verificar aquela

medida, conferir as gotas do soro, olhar bem para o oxímetro, ver

o batimento cardíaco, etc. Todos os que se debruçavam sobre o

nosso filho, olhavam-no com admiração e se nós os pais lá não

estivessemos, talvez se atrevessem mesmo a beijá-lo, porque o

calor que emanavam dos corações era por demais evidente.

O Vitinho sentiu isso, sentiu a força que todos nós lhe

demos e agarrou-se à vida e lutou por ela até ao auge das suas

forças.

Nos filmes animados de contos de fadas, assistimos

normalmente à transformação dos personagens com cores belas,

suaves, efeitos de luzes, o brilho do pó das estrelas e uma

qualquer varinha de condão que nos vai mostrando a magia do

sonho que nos encanta a imaginação.

Era esse o sonho que estávamos a viver, o nosso filho

estava calmamente a descer das estrelas e a regressar para o

nosso seio abençoado por uma fada celestial, muito bonita e

sorridente e que nos entregava a sua mão, com o respeito no

olhar, num olhar que nos dizia que o tínhamos merecido!

A esclerótica dos olhos lentamente ia tornando-se branca,

branca como nunca a tinhamos visto! A cor da pele também

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estava diferente e nem valia a pena perguntar aos médicos se o

enxerto tinha “arrancado”, pois essa constatação era evidente.

Ainda assim não conseguiamos resistir a perguntá-lo pois

sabia-nos muito bem ouvir a resposta.

Quando o Vitinho emitiu alguns sons, parecia um gatinho

que não conseguia miar, pois os gemidos que lhe saiam da

garganta entubada eram frágeis e delicados. O ‘estado crítico’

obrigava a que permanecesse sedado, mas é verdade que apesar

do cenário “assustador” sentiamo-nos agora cheios de força,

entusiasmados e com a coragem rejuvenescida.

Todos aqueles profissionais maravilharam-nos,
é deles o

milagre
.

Ficámos na UCI todo o tempo que conseguimos, até que

nos aconselharam a ir jantar e dormir.

Há muito tempo que eu e a Lígia não jantávamos juntos

fora do ambiente hospitalar. Lá fomos a um restaurante e esse

jantar, esse sim, já nos soube a alguma coisa.

Depois fomos para o Hotel, dormir para depressa

regressar para ao pé do nosso filho.

Ao longe sentiamos o olhar das nossas filhas, quase

parecia que uma força invisivel em forma de nuvem pairava

sobre nós, unindo-nos. Estávamos todos juntos em coração,

embora longe uns dos outros!

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