terça-feira, 8 de maio de 2012

Lutar até Viver - (cont.)

NOTA PRELIMINAR

Todas as pessoas aparecem citadas pelos seus verdadeiros

nomes. Ainda assim, tentarei preservar alguma discrição e por

isso, com duas ou três excepções, irei omitir os seus apelidos.

Obviamente que quem ler o livro e conhecer os ambientes em

questão, perceberá de imediato quem são as pessoas citadas.

Espero que as mesmas não me levem a mal por isso e a todas elas

o meu sincero agradecimento por terem tornado tudo possível.

Em 2004 ‘o mundo’ da transplantação hepática era-nos

completamente desconhecido.

Entrámos neste meio por causa do transplante hepático

do nosso filho e ficámos a conhecer uma vertente da medicina

muito nobre e desconhecida da sociedade em geral.

Entretanto, ao longo dos meses fomo-nos apercebendo

das virtudes, das insuficiências e de algumas particularidades.

Recentemente, o programa de Transplantação Hepático

Pediátrico (TRH) passou por algumas dificuldades que poderiam

ter custado a sua continuidade em Coimbra e em Portugal, pois

apenas em Coimbra se fazem transplantes hepáticos pediátricos.

Hoje, graças à HEPATURIX muita coisa tornou-se pública

através dos jornais, das rádios e das televisões. Tudo isto

mostrou ao país uma realidade desconhecida de todos, mesmo de

alguma classe médica!

A HEPATURIX é uma associação de jovens

transplantados e com doenças hepáticas crónicas e nós, os pais

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que a fundámos, tivemos um papel determinante na defesa da

“Escola de Coimbra” criada há 15 anos pelo Sr. Prof. Alexandre

Linhares Furtado e hoje liderada pelo seu filho!

Felizmente que o Dr. Emanuel Furtado manteve-se

connosco e à frente do programa TRH. Hoje, passados mais de

dois anos e meio sobre essa “crise”, continuamos com algumas

preocupações, mas pelo menos o programa funciona!

Assim têm-se salvo algumas vidas “pequeninas”, porque

nem todos os casos teriam resposta no estrangeiro, como aliás se

verificou nessa altura com o envio de uma criança para Madrid e

que acabou por ser transplantada em Portugal.

Como entretanto a transplantação hepática deixou de ser

notícia pelas “piores” razões, apercebi-me que o assunto tem tido

tendência a esbater-se. Ao poder político e a quem decide, espero

que o livro sirva pelo menos para relembrar que é necessário

investir na formação de mais cirurgiões!

Espero também que este seja um testemunho útil para

todos aqueles que tenham a infelicidade de passar por um

processo idêntico! Aos outros, ficará apenas a história…

A nós tinha-nos feito muito bem se tivéssemos acedido a

um testemunho deste género na altura certa! Por imperativo

moral supri agora essa falta, era o mínimo que poderia fazer, só

espero tê-lo conseguido com a qualidade mínima desejável!

O diminutivo Vitinho foi o nome que os médicos e

enfermeiros “baptizaram” o nosso filho e por isso é esse o nome

utilizado neste livro, embora para ele o nome soe um pouco a

estranho…

Vitor Raimundo Martins

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CAPÍTULO I

E de repente, tudo pára…

Lá fora passam os carros, numa pressa tão inusitada, que

parecem pertencer a uma qualquer corrida de fim-de-semana.

Correr…

Parece que o tempo me deu um estalo em câmara lenta e

me deixou parada, fazendo cair tudo o que mexia.

Agora sinto o ar, oiço os passos discretos de quem se

move, atento nos sinais mais discretos do tempo.

O dia-a-dia está off. Suspende-se o stress, e tudo o que

ontem era importante, hoje é completamente destituído de

sentido. Creio até que o ontem tinha um pouco de insano,

ridículo e até satírico.

Agora o respirar é vital.

O homem é realmente um bicho descaracterizado, onde

nada é igual a nada, onde ontem e hoje não tem sentido. Sim, faltanos

sentido, o nosso lado racional transforma-se e dissolve-se

perante o medo. E de repente tudo fica reduzido a reacções

primárias: choro, medo, taquicardia, sorriso, tremuras…

Os “objectivos de vida” são detalhes e ficam reduzidos à

existência, quando nos se depara uma barreira, uma doença, uma

infelicidade qualquer.

São 10 horas da noite, existem dois mundos em paralelo

a rodar, um lá fora, e outro na dimensão oposta, cá dentro, dentro

de um quarto, com janela, para outra janela de vidro martelado,

com estores para tapar o sol que teima em se levantar no outro

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lado. Aqui, apenas as lâmpadas fluorescentes fazem a diferença,

quando se acendem e anunciam a noite, bizarro, não?

Depois ouve-se lentamente os choros a sobressair entre as

vozes das enfermeiras, o tlim tlim dos biberões esterilizados a

serem alvo do sossego dos recém–nascidos sem mãe presente e

que ao colo de uma bata branca deglutem o líquido branco que

os sustêm mas não acalenta.

Dentro do espaço onde faço os movimentos de

translação, ouço a bateria do computador, o respirar do meu

bebé, e penso que fazer às horas de que já perdi o ponteiro.

As minhas necessidades passaram ao ponto primário e

agora basta-me muito pouco para levar o dia, a não ser este

aparelho, que me permite suspirar pensamentos sem medo de me

perder nos mesmos.

Luto entre o que tenho por fazer lá fora e a necessidade

de estar aqui a 500%, entrecorto a escrita com o ouvido atento

no respirar. O turbilhão de emoções, entre a esperança, a lógica,

o racional e o desespero esgotam-me as forças e chego às 22

horas exausta.

Só quero que a noite me relaxe com os braços à volta do

meu filho e que a manhã apareça com laivos de nova esperança, no

sorriso sereno de uma médica, que me diz: vamos ver, vamos ver…

E no corre, corre parado das horas desfaz-se e refaz-se a

esperança, a raiva de lutar contra o tempo e a teimosia de

acreditar em Deus e que o milagre aconteça.

Tenho fé, tenho fé, tenho muita fé.

Na janela interior do quarto, tenho uma imagem de Nossa

Senhora, com uma serenidade espelhada no rosto, de que não me

tinha apercebido anteriormente. As suas mãos unidas em oração,

pedem-me paz e oração, não resisto e rezo, rezo…

Lígia,

Hospital de Santo António, Maio de 2004

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