quarta-feira, 16 de maio de 2012

Cap. IV (cont.)

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Para quem não o conhece, entrar no Hospital Pediátrico
não é propriamente uma experiência muito reconfortante. O
Hospital Pediátrico de Coimbra encontra-se instalado há muitos
anos num edifício muito antigo com condições modestas e
inadequadas para o fim que lhe foi “imposto”, enfim, por vezes
os N/ políticos esquecem-se dos mais pequeninos…. e que a
saúde é o bem mais precioso de todos, o único que não tem
preço. Somos o país do nosso planeta, que mais estádios de
futebol novos tem … às moscas! O novo Hospital Pediátrico e
que já existe, tarda em estar pronto, é uma necessidade por que
Coimbra e Portugal desesperam!
Se as condições físicas do hospital são muito limitadas,
os seus recursos humanos, esses, são inexcedíveis! Os seus
médicos, técnicos, enfermeiros, pessoal auxiliar, etc, etc, etc, são
do melhor que temos, superam-se e superam as limitações
materiais do próprio hospital.
O nosso caso “era mais um”, mas hoje em consciência
sabemos que todos somos muito mais do que isso! Todos
entregaram-se ao nosso caso com total dedicação, com carinho e
com a mesma preocupação, salvar o Vitinho! Não foi só nas
nossas faces que rolaram lágrimas de desespero e de medo, todos
fizemos uma grande equipa, a melhor equipa!
Nas mãos da Dra. Isabel iniciámos os preparativos para a
derradeira batalha. Mais uma vez a nossa vida não foi fácil, Ovar
ficava um pouco mais longe de Coimbra do que do Porto e
muitas vezes via-me forçado a ficar hospedado num hotel em
frente ao Hospital Pediátrico. Outras, ia tardíssimo para casa,
para logo ás 8:00 regressar a Coimbra! Uma noite, lembro-me
que me despedi da Lígia já perto da 1 hora da manhã e 20
minutos depois já estava em casa, deitado! Nunca percebi o que
aconteceu, mas a viagem deveria ter demorado 1 hora… enfim,
não sei, talvez o
stress fosse de tal ordem que me baralhei e fiz
confusão, mas nada disto é importante, a tensão, a pressão, tudo
justifica!
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É verdade que nessas viagens ausentava-me um pouco,
pois ia sempre a repetir incessantemente “ele vai salvar-se”, “ele
vai vencer”, “ele vai salvar-se”, “ele vai sobreviver”, “ele vai
vencer”, “ele vai viver” etc, etc e muitas vezes chegava a Ovar,
ou regressava a Coimbra, sem que desse pelo passar do tempo!
A Lígia por outro lado, tinha um papel muito mais
complicado, por um lado ela não queria largar o Vitinho um
segundo que fosse, por outro, tinha necessidades fisiológicas,
tinha de comer, tinha de cuidar da sua higiene pessoal, tinha de
dormir... Já íamos no terceiro mês “em hospitais” e durante este
período ela dormiu em camas normais muitas poucas vezes. O
habitual era uma cadeira ou cadeirão e isto era um problema
comum às muitas mães que acompanhavam os seus filhos, quer
no Stº António quer no Pediátrico.
Sempre que eu ficava hospedado no hotel em frente,
então aí ela saía uma meia-hora e ia tratar um pouco de si, pois
ao refrescar o corpo, também refrescava a alma! Não podia
dormir lá porque ‘a mama’ ainda era o que mantinha o Vitinho
minimamente nutrido. Ele agarrava-se à mama da mãe, como se
agarrava à vida, e o leite materno tinha as únicas proteínas que
ele ingeria. Como dizia a Dra. Isabel era melhor deixarmos
entrar essas proteínas, pois se ele estivesse completamente
privado delas, iria entrar num processo de compensação o que
poderia ter consequências adversas.
Por outro lado, a Dra. Isabel ia tentando manter o nosso
filho equilibrado. O transplante poderia ter de ser feito de
repente, mas aparentemente ainda tínhamos uns dias! O
sofrimento do Vitinho, esse, tinha sido radicalmente reduzido, o
sangue para as muitas análises continuava a ser necessário, mas
as coisas melhoraram consideravelmente, primeiro, porque
sempre que era possível, o local da picadela era previamente
anestesiado (com um creme tópico - anestésico local - à base de
Lidocaína e Prilocaína), tal só não acontecia nos “picos de
febre”, pois aí a utilização da pomada era contra-indicada para se
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poder “encontrar o bichinho”, depois porque as enfermeiras do
Pediátrico eram de uma sensibilidade extrema, por exemplo, a
Enfermeira Isilda nunca falhava uma veia. Era “tiro e queda”,
espetava, e lá estava o sangue a correr para o tubo….
Mas o nosso filho já não estava só amarelo, a cor era
indescritível, era um castanho/esverdeado que nos matava
também a nós! Os outros órgãos eram monitorizados com
frequência, especialmente o baço que estava aumentado, fora
isso, o cérebro, os rins, o esófago e o coração estavam ok! O
fígado, esse é que estava num processo de degradação acentuado.
A ‘hora’ estava visivelmente a aproximar-se e a Dra.
Isabel, na nossa presença, ligou à Dra. Ana Maria do gabinete de
coordenação de transplantes e pediu-lhe que fosse lançado um
S.O.S. para o Vitinho. A partir deste momento o nosso filho
estava na “lista” dos transplantes muito urgentes e qualquer
dador compatível teria de ser obrigatoriamente referenciado a
Coimbra, porque os pacientes em S.O.S. passavam à frente dos
restantes. Havendo vários S.O.S. a lógica seria o bom senso e a
ponderação que os médicos fizessem do estado clínico dos seus
pacientes! Percebemos pela primeira vez que aquilo que deveria
ser simples não o era, é que a Dra. Isabel queria ter a certeza que,
se o fígado aparecesse, era-nos atribuído, pelo menos um
segmento… É aqui que se torna relevante a politica de colheita e
afectação de órgãos e que hoje em dia já não é a mesma que
estava vigente nessa época! A Dra. Isabel o que queria era que,
caso aparecesse um dador, um dos lóbulos viesse
necessariamente para Coimbra, pois o outro receptor não ficaria
prejudicado e assim optimizava-se a utilização desse órgão.
Entretanto já tínhamos conhecido o principal cirurgião, o
Dr. Emanuel. Se se pensava que o processo de transplante estava
perfeitamente decidido e era um dado adquirido, enganem-se!
Faltava ainda convencer o Dr. Emanuel (e a Dra. Isabel!) a
aceitar a Lígia como dadora! Ou seja, por um lado tínhamos um
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problema, não havia órgãos e temíamos que não chegassem a
aparecer (o tipo de sangue não era o melhor porque
potencialmente os fígados compatíveis eram mais difíceis de
obter), por outro, a Lígia corria o risco de não poder ser dadora!
Eu já tinha sido excluído por não ser compatível, mas mesmo
que fosse, dada a minha estatura, dificilmente o meu fígado
serviria para alguma coisa por ser demasiado grande!
Em relação à Lígia, as dúvidas do Dr. Emanuel eram
essencialmente duas e de natureza diferente. Por um lado,
tínhamos um problema do foro médico que se subdividia em
outros dois, a Lígia ainda amamentava e essa era uma situação
nova, por outro lado, o problema genético que originou a
falência hepática poderia ter origem nela própria. Ambos ‘fomos
estudados’ durante a gravidez, por causa do problema do
intestino hiperecogênico e nessa altura, as análises da Lígia
revelaram algumas alterações….
Ou seja, no caso da amamentação, não havia registos de
outros casos clínicos idênticos e na dúvida talvez fosse
recomendável não fazer o transplante, no caso da
hereditariedade, o problema era este, é que poderia fazer-se o
transplante e não se resolver o problema, pois o novo fígado
poderia vir a padecer do mesmo mal!
Seria pouco provável, mas era possível e em boa verdade
não existiam estudos que demonstrassem o contrário! Como
dizia o Dr. Emanuel, bastaria haver uma dúvida e eles não
poderiam ignorá-la… e tudo poderia cair por terra! Por outro
lado, tínhamos um dilema ético, é que tínhamos mais duas filhas
e embora os dadores corram sempre um risco de vida
“calculado” (se assim se pode dizer!), apesar de tudo dizia, ele
existe, isto é, há sempre risco de vida, risco das nossas filhotas
ficarem órfãs de mãe!
Numa reunião que ambos tivemos com a Dra. Isabel e
com o Dr. Emanuel tentámos convencê-los a aceitar a Lígia
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como dadora. Pareceu-nos que a Dra. Isabel concordava com os
nossos argumentos e aparentemente só o Dr. Emanuel é que
parecia resistir, por isso “apontámos-lhe as baterias”. Nesta fase
o que mais o preocupava era o problema da “herança genética”.
O nosso grande argumento, é que a Lígia era “dadora universal”
isto é, se tivesse um acidente poderia ser dadora para todos nós,
à excepção do seu próprio filho! Parecia-nos um disparate e um
absurdo…
Aqui, confesso, fui assaltado por uma série de dúvidas, é
que eu estava “de corpo e alma” a forçar o transplante sendo a
dadora a Lígia. Ainda que ela estivesse tão ou mais apegada à
ideia do que eu, era verdade que eu ficaria fora do processo, isto
é, eu iria num mesmo momento ter o meu filho em risco de vida,
a minha mulher em risco de vida e duas filhas à espera de todos
nós em Ovar!
Convenhamos que a minha posição não era fácil, eu
recusava-me a pensar que alguma coisa poderia correr mal, tinha
uma enorme fé que aquela seria a solução milagrosa, mas por
vezes, por um milésimo de segundo aparecia um fantasma
malévolo que me questionava “e se correr mal?”. Em boa
verdade e como já o referi, recusei-me a equacionar essa
hipótese, não queria ouvir, não queria pensar, não queria sequer
imaginar, para mim, tanto a Dra. Isabel como o Dr. Emanuel
Furtado eram os representantes de Deus, tínhamos de confiar e
acreditar neles! Não sou ‘especialmente’ católico, não gosto de
muitos dos rituais, como benzer, rezar, ajoelhar, etc, etc, e
sempre achei que se Deus existisse seria um Velhote simpático
que nos receberia de braços abertos. Nunca nos exigiria,
confissões, penitencias, rezas e coisas do género! Mas sem
dúvida que o facto do Dr. Emanuel se chamar Emanuel,
assentava-lhe que nem uma luva, digamos que sentíamos
Deus… nas suas mãos, por outras palavras o Homem
completava o Divino!
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ilustração por Inês
Dentro da desgraça e das derrotas diárias que nos iam
vergando, tínhamos de arranjar algumas vitórias e nessa fase,
pouco nos restava para além da fé que tínhamos nas equipas
médicas e na confiança de que algo superior iria finalmente
aparecer para salvar o nosso filho.
Já nos perguntaram diversas vezes, “é preciso muita
coragem para se ser dador” e uma vez num programa de
televisão (“Sete Pecados, Sete Virtudes” – RTPn) incluíram-nos
na “generosidade”. A ideia que muitos têm, a ideia que passa
imediatamente e que o próprio Dr. Emanuel Furtado já referiu
publicamente e diversas vezes, é que o dador é alguém que com
completo desapego pela sua vida oferece algo de mais precioso,
uma parte de si com risco da própria vida!
Não é que discorde, mas quem passa, pelo que passámos,
vê tudo isto de uma forma mais simples, é que nestas patologias
hepáticas não temos escolha e vem ao de cima o pragmatismo,
ou se faz o transplante ou se morre, não há uma terceira via!
O nosso propósito era salvar o nosso filho, logo não
tínhamos escolha! No nosso “código genético” esta seria uma
daquelas situações que não ofereciam dúvidas, da mesma forma
que já não a quisemos relevar quando se levantou a questão da
interrupção da gravidez!
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