sábado, 14 de julho de 2012

UMA CRIANÇA COMO AS OUTRAS


CAPÍTULO XI

UMA CRIANÇA COMO AS OUTRAS

Carta a DEUS – 3

Bom dia Deus,

Cada dia louvo a tua aurora e a luz que imanas na minha

vida.

Eu sei que olhas por cada um como se fossemos

insubstituíveis quando apenas tu o és, mas sinto-me eternamente

grata por me teres dado a mão quando tudo desabava, mesmo

que em lapsos de momentos de pouca clarividência, duvidei da

tua protecção, não te posso nem quero mentir, fraquejei pelo

caminho, mas mesmo assim, levantaste-me e segui as tuas

pegadas. Ainda bem!

Os meus dias são de gratidão e de imensa alegria,

inundada pelo riso dos meus filhos, pelas suas birras, pelo olhar

do meu amor e de todos os que fazem parte da minha vida.

Obrigado Deus

Lígia

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A fase inicial pós-transplante caracterizou-se por uma

protecção apertada do nosso filho. Depois de tudo o que

passámos, nada poderia falhar, não poderiamos correr riscos,

nem cometer erros! Explicávamos às pessoas isso mesmo e de

uma maneira geral percebiam, mas nem todas agiam como

esperávamos!

Os primeiros três meses, são os mais perigosos, por causa

do risco de rejeição ser mais elevado. Depois, mesmo que haja

maior tolerância, ainda assim temos de ser prudentes e o contacto

com pessoas doentes e com animais deve ser radicalmente

evitado.

Nós sempre tivemos animais em casa, nessa altura

tínhamos o Papuça (um cocker), a Mariana e a Lua (duas gatas).

O Papuça emigrou temporáriamente para casa dos meus pais e

as gatas deixaram de dormir dentro de casa. O facto de vivermos

numa moradia permitiu resolver este problema sem grandes

dificuldades e sem que os bichos fossem afectados.

Para além disso, evitávamos ter muitas pessoas em casa,

evitávamos o contacto com crianças, ou seja, tentávamos evitar

tudo aquilo que pudesse ser um factor de risco. As crianças, só

por si, eram um factor de risco “agravante” e aconteceu várias

vezes termos festas de aniversário, ou sermos convidados para

festas e “volta e meia” uma criança aparecer com febre, ou

vomitar, ou tinha uma diarreia súbita, ou apareciam com umas

borbulhas que os pais não tinham valorizado, etc! Quando tal

acontecia, ficávamos aflitos e percebiamos que nem sempre os

pais entendiam a razão da nossa preocupação, aliás isto acontecia

muitas vezes com a comida! Quase apetecia colocar um aviso no

boné, “não me ofereça comida”. É que, várias vezes o Vitinho

apareceu a comer bolo, a comer sugus, a comer uma “bucha” de

pão de outro menino qualquer, a chupar um chupa-chupa e tudo

porque nos distraiamos uma fracção de segundos!! Isto com

pessoas desconhecidas, porque com as conhecidas, era a tirania

do “só um bocadinho”!

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As crianças transplantadas têm uma certa propensão para

sofrerem diversas intolerâncias alimentares. O cruzamento entre

o FK e alguns alimentos provoca reacções adversas frequentes

visiveis nas diarreias e na queilite bilateral (cantos dos lábios

rosados e com pequenas fissuras). Em casos extremos tem-se

mesmo de alterar o imunossupressor, porque as fissuras tornam-se

profundas e sangram, além de que as faces internas das

bochechas incham e os miúdos distraidamente, trincam-se! Isto

conciliado com as fezes líquidas, provoca um grande

desconforto, agora imagine-se nós com um cuidado extremo na

dieta, a controlar todos os alimentos para tentar perceber quais os

que eram nocivos e aparece-nos o nosso filho a comer um bolo,

ou com duas ou três bolachas de chocolate, vindas sabe-se lá de

onde! É que o chocolate era precisamente um dos alimentos que

mais reacções gerava e o ovo, esse, esteve proibido até aos três

anos!! Como poderiamos encarar um pai ou uma mãe, que sem

nos questionar préviamente, ofereciam uma coisa ao nosso filho

que lhe ia fazer mal! Nunca ofereça nada a uma criança

desconhecida, pois ela pode sofrer de uma qualquer intolerância

alimentar, pode ser celíaca, pode ser alérgica, etc!

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Numa das consultas, a Dra. Isabel tínha-nos dado

instruções para não deixarmos que ele ingerisse nada com ovo,

nada, absolutamente nada, nem uma simples bolacha maria

(onde a presença de ovo é reduzida). Nessa fase, o Vitinho

andava bem, mas as fezes teimavam em permanecer

“escangalhadas” e por isso andávamos preocupados. Um dia,

porque já não saiamos em família há uns tempos, fomos a um

centro comercial e o Vitinho apareceu-nos a comer qualquer

coisa que tinha ovo, isso aconteceu quando a Lígia estava numa

loja qualquer e eu estava a tomar conta dele. A Lígia chegou à

minha beira, viu-o a mastigar “a coisa” e logo questionou-me

fazendo um semblante carregado, quase como a perguntar “estás

maluco, como é que lhe foste dar isto?!” Eu desesperado olhei à

volta, vi uma mãe que estava a dar uns doces à filha e era ela que

provavelmente tinha dado qualquer coisa ao Vitinho!! Ficámos

de tal forma enervados, que saimos logo dali, e eu fui a vociferar

meia dúzia de pragas, pois apeteceu-me perguntar à senhora se

achava que o meu filho era um macaco a quem se davam

bananas?! Quantas vezes nos dirigimos às pessoas e dissemos,

“obrigado, mas ele é alérgico”! Até em casa a história repetia-se,

chegávamos, olhávamos para os lábios “rebentados” e

comentávamos, o Vitinho comeu qualquer coisa que lhe fez

mal?! Respondia-nos a minha Mãe, ou o meu Pai, ou a Ilda,

“não, não comeu nada, foi só uma ‘goma’ e porque ele insistiu

muito e garantiu que o Pai disse que ele podia comer gomas”!

Mas o tempo foi passando e as coisas melhoraram.

Resumidamente e para que se perceba a cronologia dos factos,

logo após o transplante, deixaram de haver quaisquer limitações

à ingestão do proteinas. O mesmo não se diga dos frutos

vermelhos (incluindo o tomate), guloseimas e refrigerantes que

estiveram proibidos durante bastante tempo. Nesta fase a Lígia

especializou-se em inventar bolos sem ovos e sempre que iamos

a qualquer aniversário, ou sempre que tinhamos refeições com

sobremesas melhoradas, o nosso filho tinha o seu próprio bolo,

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que muitas vezes também era o nosso, pois desta forma

partilhávamos todos o mesmo bolo… diferente. Uns meses

depois o Vitinho passou a comer refeições com estrugidos com

tomate, depois chegou a vez das incursões aos frutos vermelhos,

especialmente morangos e mais tarde, as cerejas. Depois vieram

os ovos e pronto, estavam os alimentos todos introduzidos na

dieta alimentar!

Apesar de agora tudo estar normalizado, permanecem

alguns resquicios dos primeiros três anos de restrições, é que ele

agora é um guloso e temos de o controlar, pois de contrário tem

tendência a cair em exageros, por exemplo, quando bebe coca-

-cola está sempre a bebericar e ainda hoje achamos que não a

tolera lá muito bem!

Algumas coisas continuam “semi-proibidas”, é o caso

dos cogumelos que ele tanto adora, mas que lhe fazem mal, é o

caso do chocolate, da coca-cola, do ice-tea e de ovos crus ou

quase crus. Os ovos, estão condicionados apenas devido ao

perigo das salmonelas e por isso, nunca lhe damos ovos

estrelados mal passados de forma a poder ‘molhar’ a gema. Ele

até poderia reagir bem, mas não vale a pena arriscar!

Outros alimentos que estão proibidos é o caso dos frutos

sêcos e das guloseimas carregadas de corantes ou aquelas

“porcarias” cheias de sal e corantes ‘côr de lagosta’ que os

miúdos adoram e que eu acho intragável!

Ainda dentro do problema das intolerâncias alimentares,

não nos podemos esquecer que o Vitinho era uma criança como

as outras, também tinha as suas manhas e cometia os seus

pecados, por vezes ás escondidas, outras por nos vencer pelo

cansaço, outras ainda porque faz parte deste jogo que é a vida,

manipular e sermos manipulados!

Tudo isto refelectia-se no nosso dia a dia e quase como

um efeito colateral!

E haviam outros “efeitos colaterais”… fora do habitual!

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Mas estes já de outra índole, mais do foro afectivo e menos

racionais. As intolerancias alimentares ainda são relativamente

frequentes, independentemente do transplante,

independentemente das maleitas, mas agora o que já não é muito

comum, é o nosso filho dormir connosco, diáriamente, na nossa

cama e ser amamentado para lá dos cinco anos de idade!

Todos os nossos filhos foram muito “agarrados” à mãe e

no caso do Vitinho, o transplante provocou uma forte união entre

os dois, nos momentos maus, o carinho preferido era fazer da

mama da mãe uma xupeta. A Lígia queria compensá-lo do

sofrimento por que passou e “carburava” em função das

necessidades. Sempre que o Vitinho estava em situações

complicadas ela tinha “subidas de leite” e a coisa funcionava na

perfeição, era o lado biológico a funcionar em pleno! A Lígia ia

(e vai) frequentemente ao estrangeiro por razões profissionais e

o leite nunca secou, mesmo nas viagens mais longas, como uma

a Las Vegas, mal chegou a casa o ritmo biológico retomou o

ciclo normal. Só muito recentemente a Lígia provocou o

desquite, porque começou a achar que já não era saudável nem

para ela, nem para ele, e o próprio Vitinho consciencializou-se

que os meninos de 5 anos, não mamam e que era uma vergonha

se na escola o viessem a descobrir!

Quanto ao dormir connosco, a separação foi feita apenas

há uns dias atrás. Pela manhã, o Vitinho acaba por vir parar à

nossa cama para ‘acabar de acordar’, mas já foi um grande passo

ter aceite dormir sózinho.

Da mesma forma que cada uma das irmãs, também ele

agora tem um quarto, o seu quarto no verdadeiro sentido!

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